Especialistas apontam temas progressistas na agenda dos fiéis, apesar da ideia que se tem de pautas majoritariamente conservadoras entre estes grupos
Os religiosos escalaram o muro de pautas progressistas da esquerda brasileira ao ponto de levar o candidato Jair Bolsonaro (PSL-RJ), capitão reformado do Exército, ao segundo turno da eleição presidencial. O discurso progressivo de candidatos enraizados no campo de centro-esquerda não avançou na sociedade neste pleito. O fenômeno vai além da disputa presidencial.
O presidente da Associação Brasileira de Consultores Políticos no Distrito Federal, Alexandre Bandeira, explica que os religiosos, isto é, evangélicos, católicos, pentecostais e outras denominações, são uma força eleitoral cada vez mais compacta e, em algumas eleições estaduais, quase decisiva, superando a heterogeneidade que é tão característica. “Essa eleição veio de uma fragmentação da representatividade. O Jair Bolsonaro trouxe uma pauta mais conservadora”, analisa Bandeira.
A caderneta que eles representam aponta para questões muito específicas, como a oposição ao aborto, casamento homoafetivo, eutanásia e derivados das chamadas ideologias de gênero.
O declínio da política de esquerda a nível nacional influenciou o resultado eleitoral nos Estados. Alguns cardeais do petismo perderam a disputa em vários cargos, como a ex-senadora Ideli Salvatti (PT-SC), que não conseguiu retornar ao Congresso, e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que terminou um amargo quarto lugar com 15% dos votos para o Senado em Minas Gerais. O senador carioca Lindbergh Farias (PT) não se reelegeu e o paulista Eduardo Suplicy (PT) perdeu a segunda campanha seguida ao Senado e se contenta com um gabinete de vereador na capital paulista.
Para o professor de Ciência Política da Universidade Federal de Goiás, Hans Carrillo Gauch, as derrotas foram uma espécie de resposta para a falência do Estado, principalmente nas áreas de Saúde e Segurança Pública, durante os 13 anos do modelo aplicado pelo PT.
Hans Carrillo explica que os gráficos das eleições brasileiras são cíclicos entre as cartilhas de esquerda e direita, e algumas vezes o centro ganha força. “Na época pós-ditadura, quando o Brasil construiu a Constituição e destacou o caráter laico do Estado. O campo religioso não é homogênico. Depois da Constituição houve um movimento de igrejas para ocupar espaços no Congresso.”
A entrada dos religiosos na política ficou mais aguda neste ano basicamente por dois motivos apontados por Hans: um contexto sócio-político de discursos progressistas na última década e a retração econômica.
A defesa sumária das ideologias de gênero nos ambientes acadêmicos e sociais favoreceram o resgate do conceito da família tradicional nos últimos anos. As pessoas que decidem a eleição afloram um discurso conservador, mas não significa que são completamente conservadores, segundo Hans. “A igreja Universal e a Assembleia de Deus são as mais fortes, mas não são as únicas. Elegeram muitos deputados, mas não representam todos os religiosos do Brasil. E existem pautas progressistas entre os evangélicos”, sublinhou o docente da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Além do viés religioso na política, os representantes da classe mantém o conservadorismo no aspecto comportamental, associado ao gênero, ao respeito à autoridade e outros. “Podemos dizer que a ascensão dos religiosos resulta de onde conservadora, mas julgando por aqueles que tem tido maior visibilidade, o qual não representa a realidade total desses grupos”, analisa Carrillo.
As pautas de reivindicações da população religiosa aos políticos que elegeram rondam questões ligadas à economia de modo a beneficiar cidadãos não religiosos. O delegado da Polícia Civil de Goiás, Humberto Teófilo (PSL), foi eleito deputado estadual com 26 mil votos e boa parte desses votantes pertencem à Igreja Socorro em Cristo da cidade de Inhumas, que ele frequenta.
Em sua primeira caminhada eleitoral de caça aos votos, Teófilo foi abordado constantemente por seus simpatizantes recebendo pedidos de geração de empregos e instalação de novas empresas em cidades do interior goiano, barradas muitas vezes por “coronéis” que comandam a política e a economia municipal, segundo o delegado.
Os eleitores do delegado o pediram poucas coisas na Assembleia Legislativa. “É até engraçado como os eleitores exigem pouco dos políticos.” Teófilo foi inquirido a defender os valores cristãos na política, ser contra o aborto, a legalização de drogas, combater a corrupção e, consequentemente, não se enriquecer ilicitamente com dinheiro público. “A eleição demonstrou que a população quer uma família tradicional religiosa como exemplo. Basta ver quantos políticos foram eleitos da parte da segurança pública e do segmento religioso”, afirmou o delegado ao explicar o avanço da chamada “onda conservadora” estadual e nacionalmente.
Para Teófilo, a população quer eleger políticos com o perfil de Jair Bolsonaro nas covas abertas pelos ex-políticos envolvidos em noticiários de corrupção e os que estão presos. “O cidadão não reelegeu muitos políticos e esses espaços foram ocupados por pessoas que não tem, teoricamente, o perfil de se envolver em corrupção. Em resumo, pessoas novas e ligadas aos valores que o eleitor comum defende, como a maioria da bancada evangélica e católica apoia o Bolsonaro por estar atenta ao desejo da sociedade”, ressaltou Teófilo.
Na visão do delegado, a religião é importante na formação da base social, além de atuar na prevenção de crimes decorrentes do envolvimento com narcotráfico. “Estou há oito anos ministrando palestras em escolas públicas para crianças e adolescentes sobre os malefícios do uso de entorpecentes. Sempre procuro atingir alguma criança ou adolescente com a religião para não serem cooptados por mafiosos do crime organizado”, disse o deputado estadual eleito.
Bancada nacional
Os registros eleitorais mostram que 84% dos parlamentares que compõem o grupo dos religiosos lançaram seus nomes para continuar o trabalho na Câmara. Um pequeno percentual optou por concorrer a outros cargos.
Cabo Daciolo (Patriota-RJ) almejou o cargo de presidente da República, mas não obteve êxito. Já Marcos Rogério (DEM-RO) e Arolde de Oliveira (PSD-RJ) agora serão senadores por seus estados.
Os números oficiais indicam que há 182 integrantes em exercício na Frente Parlamentar Evangélica (FPE), mas 105 deputados pertencem a outras religiões e entraram com suas assinaturas somente para viabilizar a criação da frente.
Os parlamentares ativos representam 23 Estados, 21 legendas e 19 denominações evangélicas. Somente a partir de 1º de janeiro é que será possível avaliar como ela deve se comportar. Deles, apenas 37 se reelegeram para a próxima legislatura, ou seja, 45% deles. O percentual de renovação da Câmara como um todo foi de 55%.
A situação do deputado federal e pastor da Assembleia de Deus no Paraná Hidezaku Takayama (PSC/PR), atual presidente da FPE, é sintomática e mostra uma queda da força de seu grupo religioso no Estado. Na eleição passada de 2014, o pastor conquistou 162.952 votos e esteve entre os dez mais votados do Paraná. Mas foi derrotado nas urnas na votação do dia 7 de outubro conseguindo apenas 53.466 eleitores, praticamente um terço de sua última votação.
Alguns de seus membros também perderam base eleitoral e angariaram menos votos do que o esperado, em alguns casos precisando depender do coeficiente eleitoral para serem eleitos.
Ascensão religiosa na América Latina
O crescimento evangélico e sua irrupção na política dos grandes países latino-americanos já foram observados nas recentes eleições no México, onde geraram um vínculo tão intenso com o presidente Andrés Manuel López Obrador.
Estes já representam 10% da população mexicana e atuam na política por meio do Partido do Encontro Social (PES), que, apesar de ser considerado pequeno, de direita e conservador, é uma parte muito ativa da coalizão que lidera o Movimento da Regeneração Nacional (Morena).
Na escada religiosa, o presidente mexicano atraiu um número considerável de parlamentares. Os cálculos no ambiente de López Obrador indicam que o PSE contribuiu com o montante não insignificante de 1,5 milhão de votos.
O primeiro evangélico a chegar ao poder na América Latina foi o general guatemalteco Efrain Rios Montt, em 1982, mediante um golpe de Estado, motivado pelo seu lema “Ungido por Deus para governar”. Em 2013, Rios foi condenado a 80 anos de prisão pela Justiça da Guatemala por genocídio.
No Peru, uma parte da população apoiada por igrejas pentecostais levaram o general Alberto Fujimori à Presidência, onde permaneceu de 1990 a 2000. O pastor da igreja Cristiana y Misionera Carlos García y García foi vice-presidente de Fujimori entre 1990 e 1992.
“Os deputados e senadores no Congresso não necessariamente representam os evangélicos”
Veja, a seguir, a íntegra da entrevista com o professor da UFG, Hans Carillo Gauch, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em sociologia política e dinâmicas do poder e processos de democratização contemporânea na América Latina.
A ascensão dos religiosos resulta de uma onda conservadora no aspecto político e comportamental?
A Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus são as duas grandes forças desse grupo, com 42% dos deputados. Mas os deputados e senadores no Congresso não necessariamente representam os evangélicos. Primeiro porque “evangélicos” é um segmento social de uma diversidade que neste pequeno espaço não se pode explicar. E segundo pela relação proporcional. E, se analisarmos algumas figuras políticas, como Jair Bolsonaro, Eduardo Cunha e Levy Fidelix, podemos ver que são conservadores no sentido comportamental, associado ao gênero e ao respeito à autoridade, e também na política, quando analisamos seus discursos. Assim, podemos dizer que a ascensão dos religiosos resulta de onde conservadora, mas julgando por aqueles que tem tido maior visibilidade, o qual não representa a realidade desses grupos. É no campo das mídias digitais onde poderíamos encontrar mais evangélicos que tem uma abertura para causas e pautas sociais libertárias e que nunca ou raramente encontraram espaços em mídias tradicionais, evangélicas ou não.
Eles são conservadores em tudo?
Não. No nível social se tem reforçado a ideia de que os evangélicos são um grupo homogêneo, monolítico e fechado a qualquer pauta que passe pelos campos dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais e sexuais. Eles não são necessariamente sinônimo de conservadorismo. Há muita diversidade entre os evangélicos, com grupos e pessoas que defendem aspectos como a defesa da vida, dos movimentos populares, de causas que envolvem a paz com justiça, feministas que defendem as transformações do conceito de família e a justiça de gênero.
Existem pautas progressistas dos evangélicos?
Há grupos evangélicos com pautas progressistas, baseadas não só em legislações internacionais de direitos humanos, enfrentando violações de direitos humanos, lutando por uma sociedade inclusiva e pela garantia do Estado Democrático de Direito, mas também com base em ensinamentos e interpretações do texto bíblico sobre o amor ao próximo. Entre essas pautas, defendidas por exemplo pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito [FEED], podemos ver o direito à terra, caminhada e luta com os sem teto, defesa do Estado laico, combate à intolerância religiosa e apoio ao direito ao culto e à liberdade religiosa, direito da criança e do adolescente, enfrentamento à violência genocida nas periferias entre pobres e negros, violência contra a mulher, cuidado com o meio ambiente, defesa dos direitos dos trabalhadores, direito indígena e outras pautas de enfrentamento às injustiças.
O que explica a presença ostensiva de religiosos na política?
Faz parte da democracia. Isso graças a Constituição, que garantindo a laicidade do Estado, garante a liberdade de crença. A partir do Congresso Constituinte eleito em 1986, houve uma mobilização de igrejas para terem representantes no Congresso que votaria a nova Constituição depois da ditadura civil-militar. Foram 32 eleitos naquele pleito. A revitalização da economia dada com o Plano Real e com as políticas sociais consolidadas nos anos 2000 também ajudou. Um primeiro fator foi nos anos 1980, década considerada perdida do ponto de vista político-econômico, dados os efeitos das políticas da ditadura civil-militar sobre a vida da população, e outro período é depois dos anos 1990. As promessas de cura, exorcismo e prosperidade do pentecostalismo foram uma resposta às maiorias que mais sofriam com a inflação e falência do serviço público de saúde. A pregação da prosperidade e da guerra espiritual e a oferta de cura para doenças e de exorcismo do mal representaram e ainda representam alívios diante da degradação da vida promovida pela explosão urbana.
Depois dos anos 1990, com a revitalização da economia, consolidada com as políticas de inclusão a partir dos anos 2000, o pentecostalismo ajustou o discurso teológico à dimensão da prosperidade, não como uma saída para problemas, mas como ascensão a um estilo de vida não permitido antes. Acompanha-se o surgimento da nova classe média, com possibilidades de pequenos empreendimentos e participação na lógica do consumo. São grupos pentecostais que vão ter sucesso na adequação da religião à realidade que se consolidava. São hoje um grupo que desenvolve a cultura da vida “normal” combinada com a religião com presença nas mídias, moda própria, artistas e celebridades, inserção no mundo do mercado e do entretenimento. Não diria que é fator determinante para o aumento do número de evangélicos, mas para ampliar a visibilidade deste grupo e potencializar sua presença no espaço público.
A radicalização entre direita e esquerda é perigosa?
Torna-se urgente a possibilidade do debate e de expressão das diferentes vozes na política, porque isso é algo que não está acontecendo. Inclusive, diria que é uma realidade que precisa ser garantida neste contexto democrático. Sendo que neste contexto é onde as mídias resultam relevantes.
Fonte:Jornal Opção
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